Tornou-se lugar comum ver referências à falta de ética de investidores e empresários que estavam à frente das instituições mais afetadas pela crise financeira deflagrada em 2009. Tenho visto isso com tanta frequência que já percebo uma certa banalização da crítica que provoca a migração do sentimento inicial de indignação para a incorporação desse dado como business as usual. O mesmo processo já se deu no campo da política: assumimos como premissa que se o sujeito é político, ele não pode ser ético. Como se as eleições fossem um filtro por meio do qual a sociedade, perversamente, alçasse ao poder sua parcela de indivíduos sem ética. No meio empresarial, começa um processo semelhante.
Tanto em um caso, como em outro, há uma terceirização da responsabilidade: o problema é causado pelo outro, ele é que não tem ética. Isolamo-nos de qualquer participação no processo para nos inocentar. Não custa lembrar que esse mesmo recurso foi usado pelo José Sarney, quando ele afirmou que a crise era do Senado, e não dele. Como se o Senado existisse sem os senadores... Pois bem, fazemos a mesma coisa cotidianamente: agimos como se os políticos existissem sem os eleitores. Agora, estamos começando a fingir que os empresários e o pessoal do mercado financeiro existem sem nós, consumidores, acionistas, investidores...
Essa terceirização da responsabilidade ética acontece sem que isso soe como um absurdo (salvo em casos extremos, como o do Sarney) porque vivemos em sistemas complexos que muitas vezes não permitem que vivenciemos as conseqüências dos nossos atos. A ética foi fragmentada em inúmeras instâncias dentro das cadeias de valor, de forma que não percebemos a consequência de nossas decisões / ações / omissões. Nenhuma sacoleira do Brás se sente eticamente responsável pelas condições degradantes de trabalho da mão de obra informal que alimenta a indústria da confecção. Elas querem produtos bons e baratos – o que é visto como um desejo justo. Mas por trás deste desejo justo movimenta-se uma cadeia de valor que pode ser injusta em vários de seus elos: com as costureiras em condições sub-humanas de trabalho, com o uso de mão de obra infantil, com o arrocho dos fornecedores, com a falta de práticas ambientalmente corretas para o descarte das tintas de tecido etc.
Por trás de cada uma das práticas não éticas há um desejo justo do indivíduo ou instituição envolvido. Inclusive por trás do mercado de subprime norte-americano, reflexo de uma sociedade que valoriza os vencedores e a iniciativa sem questionar suas consequências não-óbvias. Porque é claro que dentro de sua zona específica de atuação, qualquer ser humano psicologicamente saudável considera a ética em suas decisões! Mas quem leva o raciocínio além do óbvio? Algum acionista da Petrobrás questionava se o lucro dela era ético ou não quando a valorização das ações andava bem? Ou ainda: alguém deixa de comprar ações da Petrobrás por causa do aquecimento global? Por que ela se negou a retirar o enxofre do diesel? E quem mantém as ações da Petrobrás pode acusá-la de não sustentável, quando ela toma tais decisões?
Existe um teoria que diz que estamos a seis graus de separação de qualquer um. Mas quando o assunto é ética, talvez esse grau de separação seja ainda menor. Porque a fragmentação da ética não nos separa. Pelo contrário, ela nos une na responsabilidade.
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