Porque ninguém é sustentável 0% ou 100%

Você certamente já ouviu falar do Nano, celebrado com o carro mais barato do mundo (menos de US$ 2 mil). Pequeno e econômico (20 km por litro), ele já acumula 203 mil encomendas desde abril deste ano, quando foi colocado à venda na Índia. Seu fabricante, o grupo Tata, não conseguirá atender a esta demanda e terá que sortear as primeiras 100 mil unidades, que serão entregues a partir de julho. O público-alvo, naturalmente, são pessoas até então alijadas do mercado automotivo pelo fator preço – porém ávidas pelo conforto e pelo status que um carro proporciona. Tanto que, sem chegar às ruas, o Nano já responde por 17% do mercado local. Detalhe: apenas 2% dos 1,2 bilhão de indianos tem carro hoje. Dá para imaginar o potencial desse mercado?

Um carro eficiente no consumo de combustíveis, que permite a inclusão de milhares de consumidores a uma forma de transporte amplamente reconhecida como mais digna e que gerará empregos em seu fabricante, lucros e dividendos. Uma boa notícia, portanto, dos pontos de vista ambiental, econômico e social. Ou não?

Vamos fazer uma conta tosca: imagine que um centésimo da população indiana adquira o Nano. Seriam um milhão de carros a mais no mundo. Imagine que cada carro rode pouco, uns 5 mil km por ano. Como o carro faz 20 km por litro, seriam apenas 2,5 milhões de litros de gasolina a mais em consumo por ano. Um carro 1.0 movido a gasolina libera 2,3 kg de CO2 por litro de combustível. Usando essa estatística, o total de nossa frota hipotética liberaria 5,75 milhões de quilos de CO2 na atmosfera. Ou seja, do ponto de vista ambiental, a economia proporcionada unitariamente não conseguirá reverter a curva ascendente provocada pelo conjunto da frota que será adicionada nas ruas do planeta.

Só que é complicado falar disso, né? Afinal, com que direito aqueles que consomem há décadas, há séculos, devem agora ter pruridos com a entrada de novos consumidores no mercado? Quem sou eu, que há anos usufrui o conforto de um carro próprio (mesmo sendo um Uno Mille) para sugerir que milhares de pessoas devem deixar de ter tal regalia em prol do ar que respiramos?

A necessidade de reduzir (se possível, eliminar) as causas do efeito estufa convive com o direito à dignidade humana – a qual é entendida, na nossa sociedade, como consumo e conforto (entre outras coisas). Essa percepção, tão disseminada a ponto de ser vista como algo “natural”, não tem nada de natural: ela é fruto de um determinado sistema econômico (capitalismo), de uma determinada cultura (ocidental) em um determinado momento histórico (pós-revolução industrial). Trata-se de uma percepção de direito que, no fundo, é extremamente desrespeitosa com o ser humano. Pois ela se baseia na objetivação da dignidade: ter dignidade significa ter bens (e não ser digno). Ter é ser incluído, não ter é ser excluído.

Voltando ao Nano: o maior acesso ao produto proporcionado pelo preço baixo não quebra o paradigma de inclusão / exclusão de seres humanos pelo que eles têm ou não têm. Sei bem do que estou falando: dirijo um Uno Mille. Todo dia ele me lembra que pessoas não respeitam pessoas: pessoas respeitam dinheiro.

O problema é que não existe um imaginário disponível para substituir o que foi criado pela sociedade de consumo. Se de um dia para o outro acabarmos com o consumo, tal como o entendemos hoje, todos – eu, inclusive – nos sentiremos muito injustiçados. Não contamos ainda com uma rede cultural que dê apoio à transição da nossa psique de um modelo de consumo para outro qualquer.

Se o Nano apenas reforça paradigmas de exclusão social, não é justo cobrar do Grupo Tata que ele quebre tais paradigmas. Isso vai muito além da função de uma empresa, por mais sustentável que ela seja. O máximo que ela poderia fazer seria unir-se em rede a outros agentes de mudança (escolas, ONGs, governo) e participar do processo. Mas duvido que eles estejam fazendo isso: se do ponto de vista do negócio, o Nano foi uma tacada de mestre para a Tata, do ponto de vista macroeconômico, ele nada mais é que a extensão da atual dependência de combustíveis fósseis (ele não foi concebido para rodar com biocombustíveis). Se nem isso fizeram...

Um comentário:

  1. Silvia, Belo texto! Creio que iremos fazer essa passagem para o "Viver Sustentável" aos poucos. De fato o Nano vai reduzir a fatia da pizza dos "Sem Carro" e na contrapartida aumenta a fatia da poluição. Temos que acreditar que um dia esse Nano não será movido com combustível fóssil e sim outro menos poluente. Concordas ? Você é uma Habitante Verde! http://fabianofaco.wordpress.com/

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