Sobre o ônibus a hidrogênio e a neutralidade da ciência

Em julho começa a rodar em São Paulo o primeiro ônibus movido a hidrogênio. Caso você queira detalhes sobre a tecnologia, recomendo a matéria do site Planeta Sustentável. Obviamente, ela é retratada como simples, segura, limpa, bacana... sonho de consumo sustentável!

É o tipo de notícia que alimenta nossa esperança na capacidade do ser humano de desenvolver soluções inovadoras que nos permitirão superar o desafio das mudanças climáticas, da excessiva dependência do petróleo, do esgotamento das matérias-primas...

Mas quando tiro os óculos cor-de-rosa, um sub-texto me chama a atenção nessa notícia: que o teste dessa tecnologia esteja acontecendo aqui. Mais: que um dos especialistas que participou do desenvolvimento do ônibus a hidrogênio, Ferdinand Panik (adorei o sobrenome – risos!), declare que o Brasil deverá se tornar um pólo exportador de veículos a hidrogênio. Se isso acontecer, reforçaremos nossa tradição no apoio ao desenvolvimento e disseminação de energias alternativas, que inclui o desenvolvimento do motor a álcool e da tecnologia Flex.

Por que aqui e não na Alemanha ou Japão ou nos EUA, que têm tradição (e recursos humanos e financeiros e tecnológicos) no desenvolvimento de novas tecnologias? Se a tecnologia é tão limpa, por que ela já não foi saudada como a salvação da lavoura e recebeu incentivos para entrar nas linhas de produção, já que não se fala em outra coisa senão em aquecimento global? Porque uma consulta rápida ao oráculo, quer dizer, ao Google, mostra uma infinidade de sites e matérias: todos sobre projetos futuros, promessa, protótipos mostrados em feiras de automóveis e eventos e competições alternativas... Mas nada ao alcance do consumidor.

Se a tecnologia está sendo colocada em uso no transporte público aqui em São Paulo, ela deve ser segura: nenhum político se arriscaria a mandar para o além as 50 pessoas que cabem em um ônibus! Deve dar para rodar bastante (a matéria fala em autonomia de 300 km), já que o trânsito aqui torna qualquer percurso de cinco minutos em uma penitência de meia hora. E a questão do preço não chega a ser um entrave. Primeiro, porque há muito dinheiro de subsídio rolando mundo afora na pesquisa e desenvolvimento de fontes de energia alternativas ao petróleo. Segundo, porque preço mais alto é uma característica comum a qualquer nova tecnologia (quem não se lembra do assalto que era um celular nos anos 90?) e já é contemplada na curva de adesão do produto pelo consumidor.

Não, não estou querendo desenvolver nenhuma teoria da conspiração. Só estou querendo chamar a atenção para o fato de que a ciência não é neutra, ao contrário do que acredita o senso comum, e ela se move e se desenvolve de acordo com os interesses econômicos (motivo pelo qual, por exemplo, você não cura inúmeras doenças: apenas administra os sintomas mediante ingestão constante de algum medicamento). E o poderio econômico de quem fornece energia hoje não é desprezível e ainda dá várias cartas na atual rodada do pôquer energético.

Note que eu não estou falando em práticas escusas, mas do lobby legítimo e, principalmente, da maneira como são tomadas as decisões sobre mudanças tecnológicas. Sobre este tema, recomendo a leitura do estudo da WWF sobre porquê as tantas ótimas soluções já descobertas para minimizar os impactos do atual modo produtivo não vingam. Entre os principais obstáculos estão o apoio grande e contínuo, direto ou indireto, para melhorar de métodos já defasados e a tendência, na política de planejamento e de investimentos públicos, de se consultar principalmente ou somente os grandes da indústria e do mundo dos negócios, que geralmente são a favor de soluções tradicionais.

Em outras palavras: quando deixamos a indústria farmacêutica se tornar o principal pólo de pesquisa sobre saúde, teremos remédios (e não a cura) como solução. Quando deixamos a indústria de petróleo pesquisar alternativas ao petróleo, a solução será outro tipo de carboneto (isso lembra algo para você) que também gera CO2 no ar. Não quero, com isso, negar a importância do desenvolvimento científico. Quero apenas chamar a atenção para o fato de que precisamos de um pouco de senso crítico para entender quais avanços a “ciência” está nos trazendo e, principalmente, questionar e cobrar se são esses os avanços que queremos.

De que forma? Veja o vídeo abaixo, da ONG Aavaz. É uma iniciativa. É um começo.


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