Está fazendo quase um ano. Era uma noite bem fria. Cheguei em casa, cliquei no controle remoto e o portão começou lentamente a se abrir. Nessa hora, passava na calçada um cachorrinho, numa perfeita conexão das coordenadas tempo-espaço: um minuto a mais ou a menos e o Mulekinho não faria parte da minha vida. Junto com ele, veio essa pergunta que até hoje me intriga: quem, em sã consciência, pode ter deixado na rua uma coisinha tão pequeninha e indefesa? Um animalzinho tão alegre, brincalhão, simpático?
Quem teria coragem de abandonar um filhotinho?
Mas a história de Mulekinho, antes da adoção, é a de mais de 20 milhões de outros cães e gatos, segundo estimativas que vi divulgadas pela Mars, dona da marca Pedigree e responsável pela campanha Adotar é Tudo de Bom. Tenho acompanhado a saga de algumas ONGs que se dedicam ao resgate de animais abandonados e a sensação é de que a cada ano o problema aumenta: para se ter uma idéia do nó, segundo matéria publicada hoje pela Folha de S. Paulo, em Ribeirão Preto chegam ao canil do CCZ (Centro de Controle de Zoonoses) cerca de 50 animais a cada semana. Mas o órgão só consegue viabilizar 40 adoções por mês. Mantida essa proporção e o superávit de cães abandonados apenas no CCZ de Ribeirão Preto alcançará a incrível marca de 1920 em um único ano!
Na raiz do problema, temos a conjunção de três fatores: primeiro, a muito bem vinda proibição estadual de sacrificar animais abandonados, vigente de 2008 para cá. Bem vinda, porém mal implantada: não há orçamento, pessoal ou estrutura física para dar conta dos animais abandonados nas ruas. Para compensar a ineficiência do Estado, parte da sociedade se organiza, seja em ONGs, seja por meio de pessoas físicas que atuam como protetores, para minimizar o problema. Mas é uma luta sem fim: porque não há, no Brasil, o hábito de contribuir com instituições de caridade -- sejam elas para cães, crianças ou idosos. E não se iluda: vender camiseta não sustenta ninguém! Basta você fazer as contas de quantas camisetas seria preciso vender a cada mês para alimentar 300, 400, às vezes até 600 animais - que é o que essas ONGs geralmente sustentam.
O outro fator que contribui com esta situação é o baixo índice de castração de animais: os CCZs não dão conta de castrar todos os animais que estão nas ruas e que continuam procriando, gerando mais animais de rua. Isso sem falar nos milhões de animais em tantas casas por aí que tampouco foram castrados, mas que não são monitorados para que não se reproduzam.
O terceiro fator é o segmento pet, cujo desenvolvimento acompanha, proporcionalmente, a superpopulação de animais de rua, segundo o presidente da ONG Arca Brasil, Marco Ciampi.
Fácil de entender: o segmento pet trata cães e gatos como mercadoria. Quer um? Basta comprar! Nas vitrines, os filhotes são encantadores! E seduzem especialmente as crianças que, sem qualquer noção do trabalho ou da responsabilidade implícita na tarefa de criar um animal, pedem um para os pais.
Sim, os pais deveriam ter noção - ou, pelo menos, uma bela orientação da pet shop e a o obrigação de assinar um termo legal de responsabilidade, ou qualquer coisa do gênero, que fizesse a ficha cair. Mas não existe essa abordagem no comércio de animais: embora o animal seja tratado como mercadoria, não há qualquer prazo de devolução, caso o consumidor não fique satisfeito com a mercadoria.
Não é um absurdo? Imagine comprar uma TV, descobrir que ela não atende suas necessidades e não poder devolvê-la! Pois é, com TV, tem Código de Defesa do Consumidor. Com cachorro e gato e peixe e animais exótico e pintinhos e coelhinhos e tartaruguinhas, não há!
E quantos são os consumidores que não ficam satisfeitos! Porque ao contrário do que a fofura na vitrine sugeria, o filhote faz xixi, faz cocô, chora, fica doente, dá despesa de comida e de veterinário. Pior: não sendo um boneco, ele tem vontade própria, independente da nossa. Com isso, perde a graça para muita gente.
O segmento pet consolidou a percepção do animal doméstico como mercadoria: um boneco que eu visto, pinto a pelagem de cores diferentes, faço as unhas, coloco lacinho!
Em sendo assim, acho que, por uma questão de coerência, as pet shops e os criadores deveriam acatar o Código de Defesa do Consumidor: em não estando satisfeito com a mercadoria, ele tem o direito de devolver ao "fabricante". Simples assim: fez xixi e a madame não gostou? Devolve para a loja! Ah, ele late e me incomoda? Devolve para o criador!
Tenho certeza de que se as lojas fossem invadidas por cães devolvidos, rapidamente o mercado se articularia para disseminar o conceito de posse responsável que as ONGs tanto lutam para ensinar.
E enquanto isso não acontece, além do abandono de animais, começamos a conviver com ondas de chacinas que se repetem ano após ano. A mais recente, em Ribeirão Preto, ceifou a vida de 46 animais.
Sim, eu sei que existem outros problemas que muita gente considera mais graves, como o abandono de crianças, a falta de qualidade no ensino, crimes, drogas e violência. Mas o fato de existirem outros problemas não elimina ou minimiza este. E, no fundo, todos eles estão interligados: porque enquanto não houver respeito à vida - seja ela de um cão, gato ou de uma pessoa - não solucionaremos nenhum desses problemas.
É isso aí, Silvia! Belo texto, humano, comovente e, ao mesmo tempo, objetivo.
ResponderExcluirUm abraço e continue expondo suas idéias dessa forma!
Olá Sílvia,
ResponderExcluirFaço parte do Instituto Vida Animal, ong de Montes Claros que trabalha pelo bem estar dos animais e por melhor relacionamento homen-meio ambiente. Estamos montando uma lei relacionada aos petshops. Vou incuir nela a obrigação da orientação para a posse responsável no momento da venda de animais. Achei a ideia fantástica.
Abraço,
Diane