Cordel nada encantado

Hoje foi difícil distinguir a realidade da ficção!

No plenário da Câmara dos Deputados, era como se Coronel Timóteo estivesse negociando o casamento de sua irmã, Antônia, com o delegado Batoré, para deste obter proteção e vantagens.

No Pará, o camponês e líder extrativista José Cláudio Ribeiro da Silva e sua mulher, Maria do Espírito Santo, foram assassinados. em um projeto de assentamento agroextrativista. Lembrou, mais uma vez, o "cornérzim" da novela mandando seus jagunços fazerem sua "justiça".

No Mato Grosso, madeireiros usavam correntes para derrubar árvores. Aí, não me lembrou nenhuma novela: parecia simplesmente o fim do mundo. Ou, pelo menos, o fim do bom senso.


Entre o coronel da novela e a realidade parece haver uma distância muito menor do que nossa vã filosofia imagina. Porque apesar da data - 24 de abril de 2011, primeiro ano da segunda década do século XXI! - ainda convivemos com estruturas sociais e de poder forjadas na agropecuária extrativista escravocrata. Onde o dono da terra era também dono das vidas que nela habitavam. Onde a autoridade do Estado não existia e sua voz era lei!

Hoje o Estado existe, porém de forma e intensidade diferentes, dependendo da região - e do assunto! No Pará, ele comprovadamente é um grande ausente: no município de Marabá, no Pará, a taxa de homícios é de 125 por 100 mil habitantes, segundo o Instituto Sangari - um nível semelhante ao de um país em guerra! Marabá fica ao lado de Nova Ipixuna, onde ontem dois camponeses empenhados em denunciar o desmatamento realizado por madeireiros e carvoeiros da região foram assassinados. As primeiras informações da Polícia Civil sugerem um crime de encomenda: além de terem sido abatidos com tiros de espingarda na cabeça, José Cláudio Ribeiro da Silva e sua mulher, Maria do Espírito Santo, tiveram suas orelhas cortadas - um costume típico da "pistolagem", que exibe o butim como prova do crime realizado.

Crônica de uma tragédia anunciada. Assim como no Acre, com Chico Mendes, e no mesmo Pará, com a irmã Dorothy. Promovidos por donos de terra que se sentem donos da vida que nela existe, com direito de decretar sua continuidade ou fim. A diferença é que desta vez o temor da vítima ficou registrado em vídeo, acessível a todos no YouTube, no qual ficou também gravada esta simples constatação de nossa corresponsabilidade nessa situação:




"Se vocês quiserem algo derivado de madeira, que seja derivado da floresta, procurem a origem: só assim vamos começar frear uma coisa que a gente não consegue lá no mato. Se você começar a dizer não para as madeiras duvidosas, que não tem origem, o mercado vai começar a enfraquecer e eles vão ver que não tá dando mais resultado. Ou eles se encaixam dentro da lei ou fecham as portas. Agora, enquanto existir quem compre madeira ilegal, quem compre coisas ilegais vindas da florestas, isso vai continuar."

"Vocês" sou eu e você, leitor, mas é também toda a cadeia produtiva que se beneficia do que os madeireiros e carvoeiros extraem da floresta. E, como o próprio nome indica, os carvoeiros tiram... carvão! Isso mesmo: trata-se de uma das coisas mais estúpidas em relação ao desmatamento da Amazônia e do Cerrado - as árvores são cortadas para serem queimadas e virarem carvão. Não, antes de sair correndo para checar a origem do carvão do seu churrasco, leia esta matéria da revista Observatório Social:



Nela, a reportagem investiga como as siderúrgicas do Pólo de Carajás se beneficiam do desmatamento da floresta para se abastecer do carvão necessário para manter seus fornos funcionando. Entre os nomes envolvidos estão Gerdau, ThyssenKrupp, Kohler, Whirlpool Corp, Nucor Corporation e National Material Trading Co. - além, é claro, dos políticos da região. Segundo a matéria, um dos líderes desse esquema de documentos forjados que conferem um ar legal à operação é o vice-prefeito de Anapu, Laudelino Délio Fernandes Neto. Quem denunciou o crime, o delegado Roberto Scarpari, viu seu chefe, Roberto Messias Franco, então presidente do Ibama, receber uma carta de ninguém menos que a digníssima governadora daquele estado, Ana Júlia Carepa, pedindo seu afastamento, alegando que ele era "contra o desenvolvimento da região".

Semelhante estupidez ao tentar extrair riqueza da floresta pode ser vista nesta matéria que o Jornal Hoje exibiu no mesmo dia da votação do Código Florestal:



São imagens do afã pelo desmatamento anistiado pelo novo código.
Em entrevista à Agência Brasil, o diretor de Proteção Ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Luciano Evaristo, declarou que “Há na região [Amazônia] a impressão de que o novo Código Florestal vai regularizar as propriedades ilegais. E essa expectativa vem estimulando a abertura de novas frentes. Ouvimos produtores flagrados por desmatamento dizerem abertamente que estavam desmatando porque o Código Florestal será votado esta semana e vai anistiar todo mundo”. Motivados por essa expectativa, os proprietários têm cortado a floresta mesmo na época de chuvas, quando tradicionalmente as taxas de desmate na Amazônia são menores.”

Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o desmatamento na Amazônia cresceu 27% entre agosto de 2010 e abril deste ano, se comparado ao período anterior. Dados do sistema de monitoramento por satélite mostram que 1.848 Km2 de floresta foram derrubados - 733 km2 dos quais apenas no Mato Grosso, grande produtor de soja do país, ou um acréscimo de 47% em relação ao total anterior. Só nos meses de março e abril, os satélites detectaram 593 quilômetros quadrados de novos desmatamentos no estado, 475% a mais que nos mesmos meses do ano passado.

Está tão evidente que o desmatamento está avançando pelas mãos dos produtores agrícolas que no dia da votação do Código Florestal o presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove) se reuniu com a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, para repactuar a Moratória da Soja. Obviamente a Abiove se diz contra o desmatamento para produção de soja e promete que se vier a ser confirmado que o desmatamento foi ilegal para a produção de soja, esse produtor não vai vender para Abiove ou para qualquer parceiro. Mas, como ressaltou o presidente da associação, levará dois ou três anos para saber exatamente se o desmatamento registrado pelo Inpe foi para a produção de soja - tempo que, segundo ele, necessário para preparar a terra para o plantio.

(Quem sou eu para duvidar dele, mas não custa lembrar que a soja é cultura anual, ao contrário da laranja, ou do café, que precisam de alguns anos para crescer e produzir. Sinceramente, não entendi esse lance dos "três anos"...)

E de assassinato em assassinato, de árvore derrubada em árvore derrubada, chegamos aos nossos coronéis de Brasília. Assim como seus pares no Pará, Mato Grosso e demais Estados onde o Estado é fraco demais, ausente demais, leniente demais, conivente demais, também eles colocam seus interesses particulares acima do bem da nação. Financiados pelos diversos agentes econômicos relacionados com o agronegócio e com dívidas a serem saldadas, eles promoveram hoje uma demonstração de força e falta de bom senso. Como verdadeiros coronéis, passarão a chantagear a sociedade para fazer o que é de direito, o que é sua obrigação: proteger matas ciliares, encostas que podem sofrer erosão e topos de morros. Preservar as matas que garantem os ciclos de chuva e o clima dos quais a própria produção agrícola depende.

Hoje eu queria fechar os olhos e achar que tudo foi parte da novela das seis. E que amanhã, quando acordar, Coronel Timóteo continuará como um personagem de ficção. E não como uma realidade econômica e política do meu país.

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