Sou informada pela imprensa de que podemos ter um recorde de frio esta noite: 5 graus. Em noites como essa, cresce a busca por albergues pelos moradores de rua de São Paulo. Eles são, em sua maioria, homens (86%), mais da metade dos quais (62,8%) não completaram o ensino fundamental e que majoritariamente (74,4%) consomem álcool ou drogas. E a perda do emprego foi o principal motivo apontado para justificar a permanência nas ruas. Este é o perfil oficial do morador de rua de São Paulo, traçado em censo conduzido pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) em 2009. Naquela época, já existiam 13.666 pessoas ao relento - mais gente que o total da população de metade dos 645 municípios paulistas. Esse número é consequência de um crescimento de 57% nos últimos dez anos - ironicamente, um período de estabilidade e crescimento econômico. Mas que, como se pode ver, não foi suficiente para incluir a todos.
Mas a pobreza é apenas parte do motivo que levou essas pessoas a se alijarem do convívio de seus parentes e amigos. O jornalista e escritor Tomás Chiaverini estudou essa população durante dois anos, conversando com moradores e acompanhando as ações da prefeitura. Ele chegou a se disfarçar de mendigo para ser recolhido em albergues e passar a noite com os moradores de rua do centro da cidade. Com base em sua experiência e nos relatos coletados, escreveu o livro Cama de Cimento, lançado em 2007. Chiaverini relata que a perda do emprego, citada pela FIPE, é apenas um dos motivos que levou essa população para a rua. Em muitos casos, há a dependência do álcool e das drogas. Em outros, briga com a esposa. Há também aqueles que, saídos da prisão, não são mais aceitos por seu núcleo de origem. E, sim, há as centenas de catadores de lixo tão louvados em discursos oficiais sobre reciclagem, meio ambiente e sustentabilidade.
O governo oscila entre tratar o morador de rua como problema social ou de polícia. Oficialmente, há uma Secretaria Municipal de Assistência Social, que geriu uma verba de R$ 89 milhões destinados a programas de atendimento a moradores de rua da capital paulista em 2010. São 10 mil vagas (para quase 14 mil pessoas, lembra?), 122 veículos, 20 mil refeições / dia. Tudo operando segundo um sistema que não respeita nem atende as necessidades do morador de rua. A começar pelo catador de lixo: nos albergues, ele é impedido de levar seu carrinho - que é simplesmente o seu ganha-pão! O cachorro? Nem pensar! Se ele for para o albergue, seu melhor amigo vai ficar ao relento. Mas não do lado de fora da porta, onde ele facilmente pode ir e lhe fazer um carinho: os moradores de rua são levados aos albergues onde há vagas. E que podem ficar a quilômetros de onde estavam. Sem auxílio de transporte para voltar ao local onde costumam ficar. E sem qualquer garantia de que, naquele albergue, haverá vaga para ele na noite seguinte.
Responda: você largaria seu carrinho e seu cachorro, embarcaria numa Kombi sem saber para onde vai e sem idéia de como vai fazer para voltar?? Pois é, nem eu. Só que a prefeitura não conta isso quando usa a baixa adesão do morador de rua aos albergues para justificar a falta de quase 4 mil vagas para atender todos os que precisam de um lugar para ficar à noite. E não só no frio.
E para quem abriu mão de tudo, mas obteve, em contrapartida, uma liberdade com a qual nós sequer sonhamos, eis que a Prefeitura oferece um regime espartano: os abrigos são orquestrados segundo os princípios das instituições públicas imaginadas pelos positivistas no século XIX, ou seja, lugares de ordem militar, com hora e fila para tudo!
Por que o atendimento ao morador de rua não levou em conta suas necessidades? Por que não ouviram essas pessoas para entender o que elas queriam antes de sair fazendo? Elementar, meu caro(a): porque elas não são agentes econômicos, produtivos, que pagam impostos e consomem. Elas são uma despesa: matéria desta semana do jornal O Estado de S. Paulo dá conta do custo dessas pessoas à sociedade - R$ 544 por mês, valor que obviamente não atende às necessidades mínimas de um programa voltado à reintegração. Com R$ 544 por mês ninguém paga assistente social, psicólogo, tratamento contra a dependência do álcool e das drogas. Só dá para pagar comida e limpeza do albergue. Nossa "assistência social" resume-se a não deixar a criatura morrer de fome ou frio. Ponto.
Moradores de rua são vistos como párias há mais de um século: numa das tentativas de tirar essa gente diferenciada das ruas, o governo do Rio de Janeiro as levou para longe, para os morros. Foi quando surgiram as favelas, hoje denominadas comunidades. Em São Paulo, não é diferente: o primeiro impulso, tanto o governo como moradores e comerciantes, é afastar essas pessoas para outro lugar. Nessa tentativa, vale tudo: do banco antimendigos anunciado orgulhosamente pelos prefeitos Serra e Kassab à recusa de comida e abrigo nas regiões mais nobres ou ocupadas. Vale até matar: não é raro lermos na imprensa sobre agressões, às vezes atribuídas aos comerciantes ou moradores locais, às vezes a grupos neonazistas. Em 1997, o índio Galdino foi queimado, em Brasília. Este mês, foram dois moradores de rua, no bairro do Brás, em São Paulo.
Mas levar o morador de rua para longe não é simplesmente mudar o problema de lugar: pois longe dos centros econômicos, é muito mais difícil sobreviver. É mais difícil achar lixo para vender ou para buscar roupa e comida. É mais difícil conseguir esmolas. É mais difícil até achar uma boa marquise para se esconder da chuva!
Breves experiências que me marcaram
O preconceito contra o morador de rua é tão grande que parece que se esquece que são pessoas. Há muitos anos, quando trabalhava em Pinheiros, dei dinheiro para um morador de rua comprar seu almoço. E ele entrou na mesma lanchonete que eu. Apesar do dinheiro em mãos, ele teve a venda da comida recusada. Quando protestei com o atendente, ele encolheu os ombros e mostrou os clientes - todos, com olhares ou linguagem de corpo, mostrando sua desaprovação à presença daquela pessoa suja e fedida no recinto. Consegui que lhe fosse vendido um sanduíche, mas a condição era que ele fosse comer longe. No ano seguinte, já na avenida Paulista, desci para ver se alguém se interessaria pelo marmitex quase cheio de comida que eu havia deixado no almoço. Vi um morador de rua mexendo numa lixeira e fui falar com ele. Ele não olhou para meu rosto: como um cão faminto, identificou a comida no marmitex, pegou-o avidamente e saiu correndo, como se com medo de que alguém lhe roubasse a comida. Dois anos depois, com a janela do carro baixada, fui abordada por um morador de rua pedindo esmolas. Ele tocou no meu braço: e nunca na minha vida senti um toque tão gelado! Sequer consigo imaginar o frio que ele estava sentindo. Dei o dinheiro e pensei: tomara que ele gaste tudo em pinga!
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