Moro ao lado da USP há 38 anos. Das janelas da escola (estadual), dava para ver o campus. No último ano do ensino médio (à época, chamado de "colegial"), isso era uma tortura! Pois os professores apontavam para os prédios e diziam "no próximo ano, quando vocês estiverem lá". E o medo crescia. Será que conseguiríamos passar no vestibular? Naquela época, o medo também se fazia presente quando íamos passear no campus por causa dos rumores de um estuprador que atuava por lá. Quando finalmente passei na Fuvest, comecei a ter contato com os roubos e saques. A difícil convivência da USP com a comunidade do entorno tem história. E uma história que piora a cada capítulo.
A Cidade Universitária Armando Salles de Oliveira (sim, esse é o nome oficial) abriga o campus paulistano da Universidade de São Paulo desde a década de 60. Seu projeto, originalmente dos anos 30 do século passado, é claramente inspirado na visão arquitetônica de George-Eugène Haussmann, o barão que demoliu as antigas ruas, pequenos comércios e moradias de Paris, durante o governo de Napoleão Bonaparte, para criar uma capital ordenada em grandes avenidas e bulevares. Mais que um projeto arquitetônico, esta nova geometria urbana seria fundamental para inviabilizar as barricadas e levantes populares que caracterizaram a Revolução Francesa, entre outros movimentos que marcaram a história da cidade. Era o urbanismo a serviço da manutenção do poder.
Não foi por acaso, portanto, que o projeto da década de 30 só tenha saído do papel durante o regime militar, nos anos 60: ao tirar as faculdades das regiões centrais da capital paulista e colocá-las em prédios distantes uns dos outros, acessíveis por largas avenidas nas quais não é possível se esconder ou montar barricadas, a ditadura deu um largo passo na repressão ao movimento estudantil. Sou testemunha disso: a sensação de fragilidade nas nossas passeatas de protesto, nos anos 80, devia-se em grande parte à total falta de esconderijo ou opção de fuga nas avenidas da Cidade Universitária.
E ao seu redor nasceram e cresceram bairros de classe média e favelas. Loteamentos irregulares foram alvo de processos de despejo por parte da Reitoria e deixaram para trás de si terrenos vazios, mais tarde invadidos por moradores sem teto. Centenas, milhares de pessoas carentes viveram e vivem às margens daquela que é considerada um dos principais templos da Educação no País. Porque com exceção do Hospital Universitário e da clinica veterinária, aquele vetusto centro de saber pouco contribui com o desenvolvimento social da região. Pegue-se a Faculdade de Educação como exemplo: minha única interação com ela foi quando fui convocada a ser cobaia em um estudo sobre técnicas didáticas. Mas lá está a melhor escola fundamental da região! Só que restrita a professores e funcionários - e sem vaga garantida sequer para esse público! Nas demais escolas da região, nunca houve (pelo menos no meu tempo de escola) parceria para melhorar o nível de ensino.
Não é de se estranhar, portanto, que a realidade social do entorno por vezes transborde para além dos muros e grades da Cidade Universitária. Assim como acontece do lado de cá, assaltos, estupros e depredação do patrimônio crescem ano após ano: foram 118 casos de furto e roubo nos 120 dias que separam o início de janeiro do fim de abril deste ano. E nesta quarta, 18 de maio, a banalização da vida que aflige a todos nós da Zona Oeste entrou no campus e escreveu o fim do que poderia ter sido mais um dia corriqueiro: assistir as aulas, pegar o carro, ir embora. Passar no caixa eletrônico? Pode ser! Mas entre uma tarefa banal e outra, veio o tiro. Sem dúvida, uma "fatalidade", como diz a PM. Mas, ao contrário do Realengo, uma fatalidade que talvez pudesse ter sido evitada. Não com mais segurança, como hoje pedem, acuados e cheios de razão, alunos e professores. Mas com educação. Lá atrás, quando a USP veio para a Zona Oeste e isso aqui era um grande vazio.
(Apenas para você ter idéia: em 1973, quando mudei para cá, existia um sítio produtor de verduras na frente da minha casa. Não era raro vermos vacas e cavalos nas ruas. )
Não estou com isso dizendo que o assassino é da região, nem que é de uma comunidade carente. Carência é uma coisa, opção pelo crime é outra. Estou apenas dizendo que a integração da Universidade com a comunidade naquilo que ela tem de melhor - ensino e conhecimento - é fundamental para constituir sociedades menos violentas, com condições de lutarem dignamente por melhores condições de vida.
Sem dúvida, foi uma fatalidade e estamos todos de luto por Felipe Ramos de Paiva. Mas mais que uma oportunidade para debater a pertinência da Polícia no campus, como já começou a ser noticiado pela imprensa, trata-se de uma chance para a USP refletir sobre seu potencial e papel enquanto agente educacional e sobre sua relação e postura com o bairro e as comunidades do entorno: sem seu desenvolvimento, a violência sempre rondará as arborizadas e bem cuidadas ruas e bolsões de estacionamento da Cidade Universitária.
lamentavel mesmo...
ResponderExcluir