Que chuva, não?

Acredite: houve um tempo quando “que chuva, não?” era um bordão de um comercial de TV. Ironicamente, de uma companhia petrolífera, a Shell. Quem diria que três décadas e muita gasolina queimada depois esta inocente frase pudesse causar tanta apreensão, tensão e destruição! Morreu gente aqui em São Paulo e em Santa Catarina. Perto dessa notícia, o caos do trânsito e da telefonia ganha uma importância muito menor. Irresistível, portanto, falar de mudanças climáticas no dia de hoje aqui no blog. Ainda mais depois de ter assistido, na Globo, a um metereologista que admitiu que o número de catástrofes climáticas só tem aumentado nos últimos anos.

Não deixa de ser tentador jogar pedra na Shell, na Petrobrás, na Exxon/Texaco, na BP e acusá-las de responsáveis pela situação. Ou ainda acusar o governo de desgoverno – pela mudança na lei dos fretados, que ferrou o trânsito de São Paulo; pela falta de um sistema de transporte público decente; pelo incentivo ao transporte individual motorizado via uma isenção de IPI que só beneficia a indústria automotiva! Ou ainda ressaltar o caráter inédito do acontecido, completamente fora do padrão do clima de um final de inverno abaixo do trópico de Capricórnio! Tudo isso pode até ser verdade, mas só conseguimos explicar o dia de hoje se enxergarmos tudo ao mesmo tempo agora já –e com nossa anuência!

- Como assim?!!? Eu não dei licença com o que aconteceu hoje! Aliás, alguém dá ou deixa de dar licença a uma tormenta???

Pois é, parece irracional, mas é verdade: damos licença às tormentas. Abrimos as portas a elas. Estendemos tapete vermelho. A cada vez que incentivamos o uso do transporte individual motorizado (também conhecido como carro), seja por marcar reuniões para tratar de assuntos que podem perfeitamente ser resolvidos por telefone ou por não darmos alternativas a nossos colaboradores. A cada vez que desejamos comprar ações da Petrobrás. Ou que caímos do discurso pré-eleitoral do pré-sal. Ou que jogamos lixo na rua. Ou que não prestamos atenção em quem votamos. E deixamos de cobrar serviço do político no qual elegemos. Quando twitamos #forasarney mas não fazemos nada offline. Aliás, nem online: alguém mandou email de protesto para o senado? Para rádios e jornais e TVs? Alguém aí que fala inglês se lembrou de escrever prá ONU ou para o Banco Mundial pedindo mais rigor nos empréstimos ao Brasil, para que eles não financiem corrupção? Ou incríveis R$ 24 bilhões que serão usados para comprar submarinos e helicópteros militares? Aliás, você se indignou com essa compra? Ou achou normal destinar o dinheiro de nossos impostos para armas ao invés de educação e saúde – justamente num ano em que tantos morreram por não terem recebido o tal do Tamiflu?

Mas o que isso tem a ver com a chuva mesmo?? TUDO! Cada vez que terceirizamos a responsabilidade, confortavelmente depositando-a no ombro de outro (preferencialmente, um outro sem rosto, tipo “o governo” ou “o sistema”), abdicamos de nossa capacidade de construir um presente e um futuro mais dignos. Criamos as condições para que interesses setoriais se sobreponham aos interesses de todos. Achamos normais condutas impróprias porque, afinal de contas, nós também jogamos lixo nas ruas, não é verdade? Como se não andássemos nas ruas todos os dias... como se a rua não fosse nossa... como se o país não fosse nosso... E assim entupimos bueiros e sujamos os rios. Desviamos verbas públicas. Favorecemos amigos. Governamos de olho na governabilidade, e não na sustentabilidade. E assim ocupamos o vergonhoso posto de um dos maiores emissores de gás carbônico do mundo sem que nossa matriz energética seja suja – apenas com queimada da Amazônia e do Cerrado. Assim permitimos que áreas de risco sejam ocupadas por habitações que não oferecem segurança ou dignidade. E achamos normal. Parte da paisagem.

Seria tão bom se essa chuva lavasse nossos olhos e nos permitisse enxergar o outro, nos compadecer dele, perceber que estamos todos na mesma cidade, no mesmo país, no mesmo planeta. E, tendo ciência disso, começar a mudar de atitude. E cobrar mudanças dos outros também. Tudo ao mesmo tempo agora já. Que é a única maneira de lidar com tempestades.


PS - eu não achei o filme do Shell Responde sobre chuva ("que chuva, não?"), mas achei a pérola abaixo. Praticamente uma profecia
!

Um comentário:

  1. Sílvia!!!!!
    Acabei de ler seu post e adorei!Tão inteligente e condizente com minhas idéias...Isso aqui é só um incentivo para que você escreva sempre mais e mais em protesto a toda sujeira que a chuva não pode limpar.
    Beijose saudades!

    Nayana Ferreira(do curso da GV)

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