Você achou Copenhagen um fracasso? Pois é: acho que tem gente que acha que o fracasso da CoP15 não foi suficiente e está trabalhando para jogar mais pás de terra em cima das negociações. Estou falando de Jonathan Pershing, o enviado especial dos Estados Unidos para mudanças climáticas que liderou a participação daquele país na CoP15 até as chamadas sessões de alto nível, quando chegaram o negociador chefe, Todd Stern, a secretária de relações exteriores, Hillary Clinton, e o presidente Obama. Depois de passar várias plenárias questionando a “responsabilidade histórica” das nações desenvolvidas nas emissões de CO2 na atmosfera, contribuindo para minar os avanços obtidos com o Protocolo de Kyoto, agora ele resolveu virar sua metralhadora em direção à ONU e questionar sua capacidade de conduzir as negociações climáticas – e de gerenciar o fundo de US$ 30 bilhões previsto naquela ata de reunião que estão tentando transformar em Acordo de Copenhagen.
Não há dúvidas de que a ONU saiu bastante chamuscada da CoP15: faltou pulso ao Yvo de Boer, presidente da UNFCCC, para estancar as manobras dos países desenvolvidos para minimizar o prazo dos fundos de financiamento climático, ao mesmo tempo em que dilatavam o horizonte das reduções. O Ban Ki Moon, secretário geral da ONU, quase não apareceu (depois ele se queixa que não tem a mesma visibilidade de seu antecessor, Kofi Annan). No último dia da CoP15, o presidente da França, Nicolas Sarkozy, declarou que o processo das Nações Unidas está à beira da exaustão. Ficou evidente que com o desenrolar das negociações, o tema mudança climática ganhou abrangência e complexidade maiores do que os atuais arranjos institucionais são capazes de gerenciar. Questionar o papel da ONU, portanto, não é novidade nem exclusividade dos EUA. A novidade é a proposta de Pershing para resolver esse problema.
Desde a sessão de abertura, a premissa da unanimidade como condição sine qua non para aprovações foi duramente questionada – e é esse um dos ganchos que o Pershing usa em sua crítica. Ele só esqueceu de esclarecer, para a opinião pública, que são justamente os países desenvolvidos os menos interessados em quebrar a regra da unanimidade já que, em menor número, ficariam mais frágeis perante a vontade das nações em desenvolvimento.
Não é a vontade da maioria que Pershing defende. É a manutenção do privilégio da minoria. Como a questão da unanimidade da ONU ficou muito exposta – e a força da opinião pública pode fortalecer aqueles que querem acabar com isso – ele resolveu hipocritamente usar esse gancho para defender a idéia de que as negociações sejam feitas entre aqueles que “realmente contam”, ou seja, os maiores emissores de gases de efeito estufa. Em outras palavras, EUA + BASIC, citados textualmente pelo Pershing no discurso como os países que têm que sentar e discutir a questão. Ah, e sob a liderança dos Estados Unidos, obviamente. (antes que você pergunte, ué, e a Europa?, lembro que na contabilidade individual das emissões, cada país europeu não está entre os maiores emissores; apenas quando visto em bloco, como continente, é que a Europa tem peso) Os mesmos EUA + BASIC que protagonizaram a tentativa de fechar um acordo político, fora dos trilhos da CoP, em reunião na última tarde da CoP15. Desta forma, Pershing tenta, na prática, acabar com o princípio da responsabilidade histórica que ele tanto combateu durante a CoP15. O pessoal da Europa deve estar adorando a idéia!
E eis que as declarações de Pershing saem na semana em que é anunciada a reunião do BASIC na Índia para discutir uma posição comum para atender o prazo de 31 de janeiro para apresentar as metas individuais e os respectivos planos para alcançar as reduções prometidas. Ou seja, a nova geopolítica das negociações climáticas está consolidada: o G77 deixa de ser um bloco único e passa a abrigar filhotes, como AOSIS (países insulares) e o BASIC. Cada um, a sua maneira, tem protagonismo na questão climática: AOSIS como vítima (são as ilhas que estão afundando) e BASIC como os novos vilões (já que o grupo engloba os mais novos maiores emissores de CO2 do planeta).
A proposta do Pershing soa como uma espécie de liberalismo diplomático. Da mesma maneira que o liberalismo econômico pede uma presença menor do Estado (deixem tudo com as empresas!), Pershing quer que deixemos acordos mundiais com líderes políticos, e não dentro dos procedimentos da ONU. Para os fãs do liberalismo, a idéia pode parecer bastante pragmática e eficiente. Mas como as recentes crises econômicas têm demonstrado, nem tudo são flores no mundo do liberalismo. No caso das negociações climáticas, um acordo deliberado por um único grupo carece de legitimidade e, portanto, tem menor poder de engajar todos os países. Pode contribuir para o avanço da mitigação nos países em questão – o que ajudaria muito, já que são os maiores emissores – mas deixaria de fora eixos importantíssimos que têm conduzido as negociações, tais como ajuda financeira aos países mais pobres, transferência de tecnologia, mecanismos e funding para ações de adaptação às mudanças climáticas...
Aliás, falando em funding, Pershing foi além na sua crítica à ONU: ele disse que diante do fracasso da CoP15, ele acredita que ninguém sente confiança na capacidade da organização de lidar com os US$ 30 bilhões previstos no Acordo de Copenhagen (que sequer foi validado ainda).
Note como o primeiro ministro da Dinamarca está sendo preservado das críticas, evidenciando que ele agia, sim, em nome das nações desenvolvidas: boa parte do fracasso da CoP deveu-se à forma como o presidente da conferência conduziu as negociações. Mas isso o Pershing esqueceu de mencionar, né?
Mas seria injusto terminar este texto sem mencionar que o ataque à institucionalidade do processo da ONU não é exclusividade dos EUA: ao convocar chefes de estado para uma Conferência Mundial dos Povos sobre Mudanças Climáticas entre 20 e 22 de abril na cidade de Cochabamba, o presidente da Bolívia, Evo Morales, faz sua parte para minar as negociações. Porque a tentativa de criação de novos fóruns decisores, sejam eles de países ricos ou pobres, apenas alimenta a desconfiança e a cisão entre as nações, reduzindo ainda mais as escassas chances de um acordo global. Se ele quisesse realmente ajudar e se os EUA quisessem realmente assumir uma liderança efetiva, deveriam voltar-se aos trilhos das negociações, aprimorar o que se provou ultrapassado e, desta forma, fortalecer mecanismos de negociação e governança em escala global, que contemplem e incluam a todos, apesar das diferenças individuais. Não é rápido, nem fácil. Mas é o caminho mais justo e democrático.
É o que comentei agora há pouco (já cansou de mim?): cada um só quer apontar dedos para os outros e defender a sua parcela de poder e mercado. Tirar os outros países da parada é golpe baixo.
ResponderExcluirSe conseguirem fazer isso, como você vê o futuro?