Barbárie

Estava eu aqui pensando: vou escrever sobre lixo ou vou falar da violência no Rio?

Tenho um bom motivo para falar do lixo: o Ministério das Cidades acabou de divulgar mais uma daquelas estatísticas falaciosas que fazem a alegria do Governo Federal. Com base em 306 municípios que representam 55% da população urbana, eles concluíram que a cobertura média de coleta de lixo nas cidades pesquisadas é de 90%; já a coleta seletiva está presente em 56,9% dos municípios da amostra, que inclui todas as capitais e cidades com mais de 500 mil habitantes.

Incrível como a percepção de realidade muda, dependendo se o observador é o governo ou a iniciativa privada: no começo deste ano, na Ecogerma, assisti a uma palestra do representante da empresa alemã São Judas Ambiental (eu também estranhei quando se apresentaram assim, mas devem ter traduzido o nome), a qual dizia que 90% dos 5,5 mil municípios brasileiros têm menos de 50 mil habitantes e não possuem qualquer tipo de serviço de coleta de lixo.

Ou seja, considerando-se que ficaram de fora justamente as localidades menos envolvidas com o tema (seja por menor pressão da sociedade, porque o lixo ainda não se tornou um tema tão crítico como nos grandes centros ou por orçamento público mais restrito), certamente estes percentuais seriam bem menores se a amostragem se desse ao trabalho de incluir o Brasil real, e não só o dos grandes centros. Achei que a realidade do Sul Maravilha só dominasse a novela das oito, oops, das nove. Me enganei.

Com base na amostragem Alice-no-País-das-Maravilhas, o Ministério das Cidades anunciou que 64% do lixo coletado vão para aterros sanitários, 26,6% são levados para aterros controlados e apenas 9,5% dos resíduos ainda vão para os lixões. Mas nem no Brasil-Maravilha da pesquisa há o que comemorar: 46% dos aterros catalogados não têm qualquer tipo de licença ambiental e a quantidade média de material reciclável recuperado é de 3,1 quilos por habitante por ano, menos de 1,5% do que seria possível reaproveitar.

Foi quando pensei o quanto esta situação é bárbara (= de barbárie, o oposto da civilização). Lembrei-me que no ginásio (acho que hoje isso se chama segundo ciclo do ensino fundamental, se não me engano) li um livro sobre história medieval que relatava como os medalhões usados como jóias eram perfurados para conter dentro folhas aromáticas ou tufos de tecido com perfume – para que seus portadores pudessem levá-los ao nariz sempre que passassem por algum monte de lixo que invariavelmente ficava na rua ou do lado de fora da janela das casas. Em outras palavras: a humanidade tem traquejo com a questão do lixo. Sabe que fede, que causa doenças... e ainda assim insiste em varrê-lo para debaixo do tapete, fingindo que o problema não existe.

Aí foi impossível não lembrar do Rio de Janeiro. O conflito no Morro dos Macacos é igualmente bárbaro: o saldo de mortos de domingo até hoje, terça, é de 25 vítimas. O número de feridos no coração, na alma, na vida é incalculável – vai dos que são afetados diretamente aos que assistem às imagens pela televisão. Trai, como no caso do lixo, um descaso absurdo por parte do governo e da sociedade – que por décadas insistiram em varrer o problema social para o morro, longe da praia e das áreas habitadas pela classe média. Ao tratar pessoas como lixo transformaram algumas delas em uma substância que hoje dificilmente consegue ser reaproveitada ou reciclada. Aliás, sequer há uma estação de reciclagem humana decente: as prisões brasileiras não foram concebidas para recuperar, mas para isolar. Quebrado o isolamento, graças à telefonia celular, o que expurgado foi volta na forma de barbárie, numa perfeita analogia, em escala social, da sombra junguiana ou do recalque freudiano.

E como o Brasil é o país da piada pronta, o apelido do suposto mandante das ações que se provaram estopim desta guerrilha urbana, Fabiano Atanázio, não é FA, mas FB...

2 comentários:

  1. No fim Silvinha , acho que a dpuvida seria: Falar sobre o lixo produzido pelo ser humano ou sobre o lixo que é o ser humano!?

    beijocas

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  2. O ser humano não é um lixo, mas pode se transformar em lixo. Da mesma forma que uma árvore pode virar papel que pode virar embalagem que pode virar lixo - que pode virar papel de novo, ou pode virar energia. Lixo não é sentença, não é ponto final. É vírgula.

    bjs

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